sábado, 16 de outubro de 2010

"O homem não aceita mais ficar triste" - Entrevista com o Psiquiatra Miguel Chalub

Uma das maiores autoridades brasileiras em depressão, o médico diz
que, hoje, qualquer tristeza é tratada como doença psiquiátrica. E que
prefere-se recorrer aos remédios a encarar o sofrimento.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que a depressão será a
doença mais comum do mundo em 2030 – atualmente, 121 milhões de
pessoas sofrem do problema. Para o psiquiatra mineiro Miguel Chalub,
70 anos, há um certo exagero nessas contas. Ele defende que tanto os
pacientes quanto os médicos estão confundindo tristeza com depressão.
“Não se pode mais ficar triste, entediado, porque isso é imediatamente
transformado em depressão”, disse em entrevista à ISTO É

Professor das universidades Federal (UFRJ) e Estadual do Rio de
Janeiro (Uerj), ele afirma que os psiquiatras são os que menos
receitam antidepressivos, porque estão mais preparados para reconhecer
as diferenças entre a “tristeza normal e a patológica”. Mas o
despreparo dos demais especialistas não seria o único motivo do que o
médico chama de “medicalização da tristeza”. Muitos profissionais se
deixam levar pelo lobby da indústria farmacêutica. “Os laboratórios
pagam passagens, almoços, dão brindes. Você, sem perceber, começa a
fazer esse jogo.”



Por que tantas previsões alarmantes sobre o aumento da depressão no mundo?

Miguel Chalub - Porque estão sendo computadas situações humanas de
luto, de tristeza, de aborrecimento, de tédio. Não se pode mais ficar
entediado, aborrecido, chateado, porque isso é imediatamente
transformado em depressão. É a medicalização de uma condição humana, a
tristeza. É transformar um sentimento normal, que todos nós devemos
ter, dependendo das situações, numa entidade patológica.



Por que isso aconteceu?

Miguel Chalub - A palavra depressão passou a ter dois sentidos.
Tradicionalmente, designava um estado mental específico, quando a
pessoa estava triste, mas com uma tristeza profunda, vivida no corpo.
A própria postura mostrava isso. Ela não ficava ereta, como se tivesse
um peso sobre as costas. E havia também os sintomas físicos. O
aparelho digestivo não funcionava bem, a pele ficava mais espessa.
Mas, nos últimos anos, a palavra depressão começou a ser usada para
designar um estado humano normal, o da tristeza. Há situações em que,
se não ficarmos tristes, é um problema – como quando se perde um ente
querido. Mas o homem não aceita mais sentir coisas que são humanas,
como a tristeza.



A que se deve essa mudança?

Miguel Chalub - Primeiro, a uma busca pela felicidade. Qualquer coisa
que possa atrapalhá-la tem que ser chamada de doença, porque, aí,
justifica: “Eu não sou feliz porque estou doente, não porque fiz
opções erradas.” Dou uma desculpa a mim mesmo. Segundo, à tendência de
achar que o remédio vai corrigir qualquer distorção humana. É a busca
pela pílula da felicidade. Eu não preciso mais ser infeliz.



O que diferencia a tristeza normal da patológica?

Miguel Chalub - A intensidade. A tristeza patológica é muito mais
intensa. A normal é um estado de espírito. Além disso, a patológica é
longa.



Quanto tempo é normal ficar triste após a morte de um ente querido, por exemplo?

Miguel Chalub - Não dá para estabelecer um tempo. O importante é que a
tristeza vai diminuindo. Se for assim, é normal. A pessoa tem que ir
retomando sua vida. Os próprios mecanismos sociais ajudam nisso. Por
que tem missa de sétimo dia? Para ajudar a pessoa a ir se desonerando
daquilo.

Quais são os sintomas físicos ligados à depressão?

Miguel Chalub - Aperto no peito, dificuldade de se movimentar, a
pessoa só quer ficar deitada, dificuldade de cuidar de si próprio, da
higiene corporal. Na tristeza normal, pode acontecer isso por um ou
dois dias, mas, depois, passa. Na patológica, fica nas entranhas.



Ainda há preconceito com quem tem depressão?

Miguel Chalub - Não. É o contrário. A vulgarização da depressão
diminuiu o preconceito, mas criou outro problema, que é essa doença
inexistente. Antes, a pessoa com depressão era vista como fraca. Hoje,
as pessoas dizem que estão deprimidas com a maior naturalidade. Não se
fica mais triste. Se brigar com o marido, se sair do emprego, qualquer
motivo é válido para se dizer deprimido. Pode até ser que alguém fique
realmente com depressão, mas, em geral, fica-se triste. O sofrimento
não significa depressão. E não justifica o uso de medicamentos.



Os médicos não deveriam entender este processo?

Miguel Chalub - Os médicos não estão isentos da ideologia vigente. O
que acontece é: você vem ao meu consultório. Eu acho que você não está
deprimido, que está só passando por uma situação difícil. Então,
proponho que você faça um acompanhamento psicoterápico. Você não fica
satisfeito e procura outro médico, que receita um antidepressivo. Ele
é o moderno, eu sou o bobão. Para não ser o bobão, eu receito um
antidepressivo logo. É uma coisa inconsciente.



Inconsciente?

Miguel Chalub - Os médicos querem corresponder à demanda. Senão, o
paciente sairá achando que não foi bem atendido. Receitando um
antidepressivo, eles correspondem à demanda, porque a pessoa quer ser
enquadrada como deprimida. Mas há a questão dos laboratórios. Eles
bombardeiam os médicos.



A ponto de influenciar o comportamento deles?

Miguel Chalub - Se for um médico com boa formação em psiquiatria,
mesmo que não seja psiquiatra, ele saberá rejeitar isso, mas outros
não conseguem. Eles se baseiam nos folhetos do laboratório. Não é por
má-fé. Os laboratórios proporcionam muitas coisas. Pagam passagens,
almoços, dão brindes. O médico, sem perceber, começa a fazer o jogo.
Porque me pagaram uma passagem aérea ou me deram um laptop, acabo
receitando o que eles estão querendo.



O médico se vende?

Miguel Chalub - Sim. Por isso é que há uma resolução da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária proibindo os laboratórios de dar
brindes aos médicos. Nenhum laboratório suborna médico, não que eu
saiba, nem vai chegar aqui e dizer: “Se você receitar meu remédio, vou
lhe dar uma mensalidade.” Mas eles fazem esse tipo de coisa, que é
subliminar. O médico acaba tão envolvido quanto se estivesse recebendo
um suborno realmente.



Esse lobby é capaz de fazer um médico receitar certo remédio?

Miguel Chalub - Aí é a demanda e a lei do menor esforço. Se o paciente
chegar se queixando de insônia, por exemplo, o que o médico deveria
fazer era ensiná-lo como dormir. Ou seja, aconselhar a tomar um banho
morno, um copo de leite morno, por exemplo. Mas é mais fácil, tanto
para o paciente quanto para o médico, receitar um remédio para dormir.



Os demais especialistas também receitam remédios psiquiátricos, não?

Miguel Chalub - Quem mais receita antidepressivos não são os
psiquiatras, são os demais especialistas. Os psiquiatras têm uma
formação para perceber que primeiro é preciso ajudar a pessoa a
entender o que está se passando com ela e depois, se for uma depressão
mesmo, medicar. Agora, os outros, não querem ouvir. O paciente diz:
“Estou triste.” O médico responde: “Pois não”, e receita o remédio.
Brinco dizendo o seguinte: se você for a um clínico, relate só o
problema clínico. Dor aqui, dor ali. Não fale que está chateado, senão
vai sair com um antidepressivo. É algo que precisamos denunciar.



Os psiquiatras deveriam ser os únicos autorizados a receitar esse tipo
de medicamento?

Miguel Chalub - Não acho que seja motivo para isso. Os outros
especialistas têm capacidade de receitar, desde que não entrem nessa
falácia, nesse engodo.



Mas os demais especialistas estão capacitados para receitar essas drogas?

Miguel Chalub - Em geral, não.



É comum o paciente chegar ao consultório com um “diagnóstico” pronto?

Miguel Chalub - É muito comum. Uma vez chegou um paciente aqui que se
apresentou assim: “João da Silva, bipolar.” Isso é uma apresentação
que se faça? Quase respondi: “Miguel Chalub, unipolar.” É uma
distorção muito séria.



O acesso à informação, nesse sentido, tem um lado ruim?

Miguel Chalub - A internet é uma faca de dois gumes. É bom que a
pessoa se informe. A época em que o médico era o senhor absoluto
acabou. Mas a informação via Google ainda é precária. Muitas vezes, a
depressão, por exemplo, é ansiedade. Mas as pessoas não querem
conviver com a ansiedade, que é uma coisa desagradável, mas que também
faz parte da nossa humanidade. Tenho uma paciente que disse: “Ando com
um ansiolítico na bolsa. Saí de casa, me aborreci, coloco ele para
dentro.” Então é isso? Se alguém me fala algo desagradável, eu tomo um
ansiolítico? Isso é uma verdadeira amortização das coisas.



O que causa a depressão?

Miguel Chalub - Esse é um dos grandes mistérios da medicina. A gente
não sabe por que as pessoas ficam deprimidas. O mecanismo é conhecido,
está ligado a uma substância chamada serotonina, mas o que o
desencadeia, não sabemos. Há teorias, ligadas à infância, a perdas
muito precoces, verdadeiras ou até imaginárias – como a criança que
fica aterrorizada achando que vai perder os pais. As raízes da
depressão estão na infância. Os acontecimentos atuais não levam à
depressão verdadeira, só muito raramente. Justamente o contrário do
que se imagina. Mas mexer na infância é muito doloroso. Não tem
remédio para isso. Precisa de terapia, de análise, mas as pessoas não
querem fazer, não querem mexer nas feridas. Então é melhor colocar um
esparadrapo, para não ficar doendo, e pronto. É a solução mais fácil.



O antidepressivo é sempre necessário contra a depressão?

Miguel Chalub - Quando é depressão mesmo, tem que ter remédio.



Há quem diga que hoje a moda é ter um psiquiatra, não um analista. O
que sr. acha disso?

Miguel Chalub - As pessoas estão desamparadas. Desamparo é uma
condição humana, mas temos que enfrentá-lo, assim como o fracasso, a
solidão, o isolamento. Não buscar psiquiatras e remédios. Em algum
momento, isso pode ficar tão sério, tão agudo, que a pessoa pode
precisar de uma ajuda, mas para que a ensinem a enfrentar a situação.
Ensina-me a viver, como no filme. Não é me dar pílulas, para eu ficar
amortecido.



O que é felicidade para o sr.?

Miguel Chalub - A OMS tem uma definição de saúde muito curiosa: a
saúde é um completo estado de bem-estar físico, mental e social. Essa
é a definição de felicidade, não de saúde. Felicidade, para mim, é
estar bem consigo mesmo e com o outro. Estar bem consigo mesmo é
também aceitar limitações, sofrimento, incompetências, fracassos. Ou
seja, felicidade também é ficar triste de vez em quando.

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