sábado, 18 de junho de 2011

Violência: quem não morre adoece

Médicos defendem rede de saúde para acolher sobreviventes de traumas como assalto, sequestro e assassinato de familiares

saude.ig.com.br

Fernanda Aranda, iG São Paulo | 05/06/2011 07:30

Todos os anos no Brasil, 49.966 pessoas são assassinadas. De forma imediata, só este tipo de ato violento, tira a vida de 137 crianças, jovens, adultos e idosos por dia.

De maneira lenta, esta mesma violência adoece incontáveis pais, amigos e parentes destas vítimas. Eles escapam da fatalidade, mas amargam todas as outras sequelas do trauma.

A violência vista com o olhar da saúde é uma doença de múltiplos sinais, que vão além do óbito. Quem sobrevive – ou por vivenciar ou por ter relação com quem o fez – pode enfrentar depressão, síndrome do pânico e ansiedade. Sinais físicos também são consequências, como hipertensão, anorexia, enxaqueca, além de dores crônicas e persistentes.

“Se alguma doença transmissível ocasionasse este volume de mortes (e sintomas), teríamos uma situação de comoção nacional”, apontam Nereu Mansano e Alessandra Schneider, responsáveis pelo setor de violência, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

É para este leque de síndromes desencadeadas pelos traumas que os médicos estão empenhados em encontrar tratamentos em rede e eficazes. O desafio mais imediato, afirmam os especialistas, é fazer com que estas “vítimas secundárias” da violência deixem o anonimato e virem pacientes.

Elas podem estar espalhadas por todo o País, sofrendo por terem sido assaltadas, sequestradas, agredidas ou por terem relação com um dos 37,5 mil mortos anualmente no trânsito, ou ainda com 9,3 mil que se suicidam por ano (dados parciais de 2009 do Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde, computados pelo Conass).

O silêncio

“Infelizmente, muitas pessoas, ainda por desinformação, deixam de procurar assistência adequada exacerbando assim o sofrimento e as sequelas traumáticas”, afirma o doutor em neurociência especializado em violência, Julio Peres.

“Por outro lado, as pessoas que buscam auxilio especializado aumentam muito as chances de superarem a dor e desenvolverem suas vidas”, completa Peres. Além de atender as vítimas, ela também capacita profissionais de várias áreas da saúde para que possam reconhecer os sinais do trauma em pacientes que frequentam consultas triviais, seja durante uma visita ao dentista ou ao cardiologista, por exemplo.

Quando toda a estrutura de saúde é treinada para reconhecer que aquela pressão alta pode ser resultante de um sequestro no passado, o tratamento, neste caso, não será restrito à dieta saudável e ao anti-hipertensivo. O paciente pode ter acesso ao tripé composto por psicoterapia individual, terapia em grupo e remédios antidepressivos, que tanto tem ajudado os encaminhados aos serviços médicos voltados à violência.

Os sintomas

Uma das experiências de êxito é gratuita e realizada no Programa de Atendimento à Vítima de Violência (Prove) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O acolhimento é feito para todas as pessoas que procuram espontaneamente o serviço ou são encaminhadas por outros hospitais, com o objetivo de definir se são casos agudos (ou seja de efeitos mais curtos) ou crônicos (duradouros).

“O medo ou a dor inicial são reações comuns ao estresse sofrido, o que chamamos de transtorno de adaptação, que serão amenizados com o passar do tempo”, explica Jair B. Neto, psiquiatra do Prove.

“Mas nos que adoecem de forma crônica, estas sensações não passam, ou podem aparecer tardiamente e sempre acarretam prejuízo social. A pessoa não consegue mais trabalhar, deixa de sair de casa, de fazer coisas que sempre fazia.”

Os efeitos crônicos podem ser resultantes até mesmo da negação da vivência do trauma – e por isso a manifestação tardia – afirma Adelma Pimentel, diretora da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Pará e autora do livro Violência psicológica na relação conjugal (Ed. Summus). Segundo ela, uma sequela possível “dos olhos que não querem ver e da boca que não quer falar” é a compulsão.

“A pessoa come exageradamente, bebe mais, tem relações sexuais com qualquer um, gasta dinheiro que não tem, usa drogas. Qualquer coisa para esquecer. Mas o efeito vai rápido embora e, para não lembrar, começa a reedição do ciclo das violências privadas.” Tudo por causa do trauma.

O tratamento

Não há como prever quem vai adoecer cronicamente por causa da violência. De acordo com os estudos de Júlio Peres, 10% desenvolvem algum tipo de transtorno pós traumáticos (TEPT). Mas também não há como esperar para saber quais vítimas vão entrar para esta estatística e só assim agir.

"Nosso estudo enfatizou a importância da brevidade do atendimento psicológico especializado”, afirma Peres em referência ao trabalho feito com policiais militares que viveram, em 2006, os ataques em São Paulo do grupo criminoso chamado Primeiro Comando da Capital (PCC). Os achados estão no Journal of Psychiatric Research.

Três meses após os ataques, 36 policiais que atuaram no episódio foram selecionados. Um grupo fez tratamento psicoterápico e outro não. Exames de ressonância magnética, realizados 40 dias depois, mostraram alterações físicas e cerebrais importantes. Quem fez terapia tinha mais ativa a parte do cérebro responsável pela superação e enfraquecimento da memória traumática (córtex médio préfrontal). Quem não fez tratamento, mostrou maior atividade da amígdala (envolvida na expressão do temor), sujeito a danos psicológicos e físicos.

É fato que para chegar ao tratamento especializado e eficaz para os sobreviventes da violência, o número de psiquiatras e psicólogos na rede pública e privada precisa ser ampliado, é preciso sensibilizar conselhos tutelares, professores e toda a sociedade.

“Tratar deste assunto já no pré-natal é uma forma não só de cuidar como também prevenir a violência”, acredita Saul Cypel, neurologista infantil e consultor da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, que acolhe crianças vítimas da violência.

A proposta do Conselho de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) é que as equipes de saúde da família sejam capacitadas para servir de ponte entre os pacientes que adoecem por causa da violência (e possam estar escondidos) e os serviços especializados. A vivência do psiquiatra Jair B. Neto indica que o atendimento a estes resgatados do anonimato não pode ter prazo de validade.

“No Prove, temos pessoas que sofreram a violência há 20 anos e só sentiram os efeitos agora.”